
“Eu costumava pensar em mim mesmo como prisioneiro dos meus pensamentos”, disse Fyl. “Aos 18 anos, ou aos 20, já não me lembro, li um livro sobre um poeta. Os seus poemas eram ranhosos no mínimo. Um ou outro aproveitavam-se, mas dava para ver a presunção a brotar daqueles versos. Dava para ver um gordalhucho a escrever umas patetices, porque alguém lhe disse um dia que ele escrevia bem”. O comboio está agora a desbravar caminho por uma floresta. Alguns desgraçados lançam caminho de ferro 5km à frente. A esta velocidade chegaremos ao fim da linha em 30 minutos. “Parece que ele se suicidou. Quer dizer… Suicidou-se. Disso não há dúvida. Estricnina, parace-me. Era um pobre gordalhucho que alguém encheu de falsos sonhos e quando olhou em redor viu estar só, viu que o seu talento era largamente sobre-valorizado. Não há nada pior que nos sentirmos aquém do que sonhámos. A maioria de nós passa por esta pequena tragédia e ultrapassa-a revestindo-se de cinismo”. Faltam agora 3km. A floresta densificou bastante e os raios solares já pouco conseguem fazer para atravessar as copas das árvores. O maquinista pede uma água à menina dos comeres e beberes. Ele saberá que o fim da linha aproxima-se? “Suicidar-se por não ser quem queria ser… Merda, que isso é a coisa mais poética que já ouvi. Um poeta que escrevia miseravelmente, mas que viveu como um verdadeiro poeta. Isso sim, é um poema”. O comboio acabou de passar o ponto de não retorno. Agora, mesmo que quisesse, já não é possível parar a tempo de evitar descarrilar. “Eu também queria ser um poeta. Sempre fui mais sensível que os outros e pensei que isso fosse uma característica importante para escrever. Eu escrevi tanto. Até que um dia li o que tinha escrito e me soube igual ao poeta gordalhucho”. Fim da linha.
Originalmente publicada na fendamel em 13/12/2013|João Cinda (pseudónimo)